Crash de David Cronenberg: um mergulho nos estranhos prazeres

A obra de David Cronenberg sempre se caracterizou por questionar o corpo e seus limites, colocando em xeque nossa relação com as tecnologias e os avanços científicos. Mesmo entre suas produções, Crash se destaca como um olhar peculiar sobre a fascinação humana pela violência e o fetichismo do corpo.

Lançado em 1996, o filme se baseia no romance homônimo de J.G. Ballard, e á narrativa segue James Ballard (interpretado por James Spader), um cineasta que, após um acidente de carro, se une a uma comunidade de pessoas que compartilham sua obsessão pelo choque e pelas cicatrizes que o corpo pode sofrer.

Com uma estética que oscila entre o distópico e o cotidiano, Crash explora a ideia de que o corpo humano pode ser um objeto de fascínio erótico e estético, ao mesmo tempo em que questiona as fronteiras entre o desejo, a dor e a tecnologia. Não se trata apenas de fetichizar as vítimas de acidentes de trânsito, mas de mergulhar no abismo que se abre entre a experiência sensorial e as diversas manifestações do desejo.

Nesse sentido, a tecnologia aparece como um elemento central para a construção das máscaras que utilizamos para suprir carecimentos internos que, na maioria das vezes, sequer percebemos. A relação entre corpo e tecnologia leva à criação de próteses e acessórios que expandem as possibilidades do prazer, assim como do risco e da dor.

O filme, assim como o livro, foi encarado por muitos como uma celebração da perversão, do fetichismo e do erotismo da violência. No entanto, Cronenberg parece estar mais interessado em analisar os mecanismos que nos levam a buscar prazer nesse tipo de experiência. Como se o choque fosse a forma mais extrema de lidar com o vazio existencial, e por meio dessa experiência poderíamos transcender nossa condição humana.

O diretor canadense utiliza metáforas visuais e sonoras para compor essa sensação de estranheza e desconforto que acompanha o filme. As imagens dos carros acidentados se misturam com o sexo, e a música eletrônica de Howard Shore interage com os sons dos motores e das batidas dos carros.

A proximidade que a câmera de Cronenberg tem com os personagens ressalta a claustrofobia que se instala nesse ambiente de obsessão e sedução. É como se o espectador também fosse seduzido pela lógica perversa dos personagens, que buscam no acidente uma nova forma de se compreenderem e de compreenderem o mundo.

Crash não é um filme fácil, nem gratuito. Todavia, é parte importante da filmografia de Cronenberg, que sempre busca por um questionamento ácido e provocativo em relação à vivência humana e suas estranhas vontades. Nesse sentido, o filme se configura como uma investigação sobre a obsessão e o prazer no mundo contemporâneo, e as múltiplas formas de lidarmos com a falta.